11/11/2013

LEMBRANDO O MIRINAE

Todo este stress com o tufão Haiyan fez-me reviver uma aventura inesquecível que aconteceu há exactamente quatro anos, com o primeiro grupo que acompanhei numa viagem pela Indochina.

Tínhamos apanhado o Reunification Express em Hué e teoricamente íamos passar vinte horas sobre carris até Saigão. Partimos de manhã (eu e oito pessoas) e a paisagem passou meio desfocada ao longo do dia, sempre com a chuva a bater com força nas janelas - até que escureceu.

E de repente: um safanão forte, uma travagem brusca, as luzes apagaram-se. Silêncio absoluto. Algo acontecera.

O vento projectava ramos de árvores e lixo, que chocavam contra a janela do nosso compartimento. Não se via nada lá para fora... só água e folhas a voar no escuro.

"Acho que o comboio descarrilou", disse uma das raparigas do grupo.

Resumindo: tínhamos sido atingidos pelo furacão Mirinae. Categoria 1, mas fortíssimo. Claro que não nos apercebemos logo disso. Durante aquela noite, parados no meio da escuridão, pensávamos  que era apenas uma tempestade. Alguém nos veio dizer que os carris estavam debaixo de água, que não era seguro o comboio avançar no escuro, que teríamos de esperar pela manhã seguinte. E na manhã seguinte disseram-nos que algures tinha caído uma ponte, e mais para a frente um aluimento de terras...

O comboio tinha recuado durante a noite, para uma zona mais alta. Parou junto a uma pequena aldeia e, quando saímos na manhã seguinte, havia gente numa pequena plataforma, rodeados de alguidares cheios de água. Eram para nós. Refrescámo-nos aí e fomos convidados a ir à aldeia comer. Não havia restaurante, mas alguém fez chegar umas sanduiches. Depois vieram os ovos cozidos... com fetos de pato lá dentro.

E isto foi só o princípio de uma descoberta mútua, entre nove estrangeiros e dezenas de locais. Durante o tempo que ali passámos, não tivemos outra hipótese senão esperar. Curiosos, miúdos e graúdos foram ganhando confiança, descobrindo formas de comunicar - a sério: não tenho palavras para descrever as sensações deste encontro, desta partilha, desta descoberta.





Passaram-se dois dias e duas noites. Sempre na promessa de "logo à tarde o comboio arranca", e logo à tarde diziam "logo à noite", e logo à noite era "amanhã de manhã". Apanhámos bebedeiras de aguardente de arroz com os locais, ensinámos jogos às crianças, jogámos às bola e fizemos explorações a pé, na estrada, para avaliar os estragos. Os dentes lavavam-se nos alguidares que eram distribuídos, de manhã, na plataforma. E à noite, depois de copos e conversa, lá voltávamos ao nosso compartimento para dormir. E o comboio não mexeu um milímetro, durante todo este processo.








Aos poucos fomos percebendo que a tragédia era de dimensões bem maiores que um comboio avariado. Soubemos, por telefone, que tínhamos cruzado caminho com um tufão. Que estavamos isolados pela água, estradas cortadas, sabe-se lá mais o quê. Que havia cento e tal mortos a lamentar. Que provavelmente era melhor começar a planear algo, porque não podíamos ficar ali à espera que alguém nos viesse salvar.

Ao fim de dois dias e duas noites, por muito que nos apetecesse ficar e aproveitar ainda mais a irrepetível experiência humana que foi partilhar este acontecimento com as pessoas daquela aldeia... arranjei nove motas e nove drivers, e "evacuámo-nos".

Por rios de lama e estradas levadas pela enchurrada, por carris e cruzando caminho com equipas de televisão, gente a carregar mantimentos, o governo civil e o exército... saímos pelos nossos pés.






No momento em que deixávamos a aldeia para trás, ainda sem saber muito bem como processar tudo o que nos tinha sucedido, um enorme arco-iris apareceu no céu. Desatámos todos a rir, apetecia dizer tanto mas não foi preciso, aquele momento era nosso, para sempre nosso, algo que nenhum esqueceu até hoje.

Confesso que, escrever sobre esta experiência deixa-me novamente emocionado. Isto mexe com qualquer coisa. Há tanto mais para contar, há detalhes deliciosos, há risadas e ansiedade, há um descobrir lento daquilo que aconteceu. Uma inocência nas brincadeiras, na nossa postura ali, que só depois de sairmos é que perdemos. Há a frustração de largar uma coisa que só se dá verdadeiro valor depois. Há coisas difíceis de descrever, também. Ou de dar uma ordem lógica. Entre o sonho e o telejornal... aquilo que vivemos foi... único.

Fica uma primeira partilha, a propósito do que se passou esta semana - e espero um dia ter capacidade, disponibilidade e arte para conseguir escrever qualquer coisa de jeito, qualquer coisa que faça justiça ao que sentimos não só durante aqueles dois dias, mas na "ressaca" daqueles dois dias. Qualquer coisa que faça justiça à minha memória e à dos meus companheiros de viagem.

2 comentários:

Lv disse...

Lindo Jorge, grandes memórias, a vida é assim mesmo, e é tão bom ler estas memórias fantásticas das tuas viagens.
Obrigada

Clara Amorim disse...

Estou siderada...!
Há viagens que são grandes lições de vida!!!