04/02/2014

UM MOMENTO

No dia em que fui cortar o cabelo, ainda na aldeia do Kosik, tivemos uma pequena avaria na mota. O meu amigo parou junto a uma oficina e ficou a tratar do problema com o mecânico - e eu, depois de observá-los durante uns minutos, deixei-me de pé junto à estrada a ver o mundo a passar e a acontecer.
A determinada altura vi uma velhota com ar - desculpem-me o latim - andrajoso, a sair de um buraco num muro pintado com publicidade a uma cimenteira. Despenteada, toda curvada, roupa e pele sujas como o chão que pisava. Andava devagar e aparentemente sem destino. Parecia perdida. Olhava à volta em silêncio, não a vi chamar ninguém nem fazer gestos. Estava ali, somente.

Desviei por momentos o olhar e concentrei-me numa vaca do outro lado da estrada. Também ela parecia perdida. Vi-a aproximar-se do alcatrão daquela forma que só-na-Índia, parece que sabe que é sagrada, nem se dá ao trabalho de ver se vem algum carro. Eles que parem.

Atravessou lentamente a estrada, ouviu uma buzinadela e obrigou a que pelo menos três viaturas travassem e se desviassem dela. Lembrei-me que há muito tempo me explicaram que todas as vacas têm alguém que toma conta delas. Pode ser alguém que não esteja visível - mas estará pelas redondezas. Não há vacas sem dono. Várias vezes expliquei a mesma coisa a outros amigos, que acham sempre estranho ver vacas sozinhas "por aí". Mas esta... de onde vinha esta vaca? E para onde ia? Parecia-me abandonada, sem ninguém a tomar conta.

E no entanto...

Só quando a vaca estava a chegar ao "meu" lado da estrada é que percebi o que estava a acontecer. A velhota com ar de quem tinha acordado de uma longa hibernação estava a voltar lentamente para o buraco de onde tinha saído, num muro pintado com publicidade a uma cimenteira. E a vaca ia atrás dela. Não foram precisas palavras nem gestos nem gritos. Não foram precisos instrumentos, paus e palavras de ordem, nem canções, nem nada. Uma troca de olhar.

A vaca entrou pelo buraco do muro pintado com publicidade a uma cimenteira e eu montei-me à pendura na mota, que o Kosik ja me chamava para voltarmos para casa.

3 comentários:

Joana Fragoso disse...

quando as "almas são gémeas" basta um olhar

Clara Amorim disse...

Tu paras e o mundo acontece...! ;)

Tânia Magalhães disse...

Adoro o mundo visto assim, com estes momentos!