27/03/2015

VINTE E QUATRO HORAS NO MYANMAR

Texto escrito ontem à noite, ou seja: faz favor de dar um desconto de mais vinte e quatro horas.

Estou há vinte e quatro horas no Myanmar. Parece pouco tempo, mas vinte e quatro horas é o suficiente para viver uma série de eventos e insólitos.

Parte 1: Cervejas e tangas

Enquanto bebia uma cerveja com o suíço à frente do hotel (ainda a recuperar das emoções fortes do voo que me trouxe a Yangon), partilhando projectos pessoais e ideias acerca do Myanmar - um inglês sentado na mesa ao lado perguntou se podia juntar-se a nós. Claro que anuimos, ele puxou de uma cadeira e pousou a sua cerveja com um sorriso.

Custa-me explicar como, mas a verdade é que a noite mudou aí. Uma cerveja deu lugar a outra, e a outra cerveja deu lugar a mais uma - e por aí fora, perdi a conta, voltei para o hotel (que era mesmo à frente) já a trocar os degraus.

O inglês não se calava. E o que começou como uma agradável troca de ideias entre mim e o suíço, acabou numa espécie de monólogo, disfarçado de debate, em que o recém-chegado contou dezenas de histórias fantásticas, muito interessantes mesmo... mas para ser sincero não posso garantir que sejam todas 100% verdadeiras. Desde fugir de bombas em campos de refugiados birmaneses na fronteira tailandesa, a ver um amigo morrer enquanto desminava não-sei-onde, num trabalho à borla para a ONU, mais reuniões com altos-dignatários, fugas mirabolantes de uma multidão de tailandeses em fúria, e não-sei-quê do Ébola, mais outro voo que ia caindo. Que emoção! ;)

Contudo, não é para falar do inglês no bar da frente que serve este post. É que estou neste momento em Pyay, uma terrinha algures no mapa da Birmânia, entre Yangon e Bagan - e se aqui estou é porque passei a tarde toda - quase oito horas, para ser mais preciso - dentro de um autocarro.

Como disse: vinte e quatro horas dá para muita coisa.

Parte 2: Uma longa viagem de autocarro

Saí do hotel ao final da manhã. Primeiro: mais-de-uma-hora no taxi, até à estação de autocarros. Depois: mais-de-uma-hora à espera, porque a partida afinal era só às três da tarde (aproveitei para almoçar). E finalmente: mais-de-uma-hora num pára-arranca a apanhar passageiros e a pôr gasolina, a comprar isto-e-aquilo, a pedir benção a este-e-aquele... parecia que nunca mais saíamos de Yangon.

Mas saímos.

E quando finalmente avançámos pela estrada fora, entrou para o lugar ao meu lado um senhor com ar de quem já não via água há uns dias. Vinha a suar e com uma aura quente e húmida de quem dorme com a mesma roupa há várias noites, sem nunca tomar banho nos entretantos. Agarrado a um pano sujo, enrolado em qualquer coisa, não consegui perceber o quê, um volume com o tamanho de dois ou três livros empilhados.

Sentou-se a meu lado, portanto.

E claro: sofria do síndrome dos 103%.

Encosta a perna, arruma o pano entre os dois lugares, depois tira o telefone, manda umas mensagens, guarda o telefone no bolso da camisa, acaba por adormecer mas com a perna cruzada - ou seja, o pé descalço e sujo a usurpar bem mais que 3%.

Depois tocou o telefone mas ele não acordou. Buracos e solavancos, travagens e guinadas - e ele nada. E quando eu estava já muito próximo daquele momento em que "quero-lá-saber-vou-acordá-lo", eis que começa a mexer-se no seu lugar (e em pelo menos 3% do meu), e sinceramente arrepedi-me de o querer acordado, porque cada vez que se mexia aumentava a intensidade do cheiro.

Adiante: enfiei os fones nos ouvidos e tentei abstrair-me. Mas era impossível, com os pequenos movimentos nervosos sempre a interferir com o meu universo. Comecei a enviar-lhe aqueles olhares enjoados que achamos sempre que resulta mas que não servem para nada... e eis senão quando reparo no ecrã do telefone. O senhor tinha um chat aberto e estava a responder a uma mensagem. E o que se via, por cima da mensagem que estava a escrever, eram duas fotos. A primeira da Aung Su Kyi, a famosa líder birmanesa vencedora do Nobel da Paz; e na segunda via-se uma mão aberta com uma pistola em cima. Tipo "olha lá este revólver que tenho para ti".

Oops.

Desviei o olhar, para não "dar barraca". Mas o senhor manteve-se horas a olhar fixamente para a mensagem. E ao longo de boa parte da viagem, mesmo depois de desligar o telefone, de vez em quando voltava a ligar o chat e era vê-lo muito quieto, concentrado naquelas duas imagens. Medo.

Comecei a imaginar cenários absurdos, num deles o homem tinha comprado a pistola e ia matar a senhora da fotografia. E quando voltei a reparar no pano enrolado em sabe-se lá o quê, então fantasiei que trazia a pistola com ele, por isso o melhor era não chateá-lo acerca dos 3%. Fica lá com isso.

Entretanto passavam telediscos na televisão ao fundo do corredor, novelas birmanesas, karaoke. E o autocarro lá abria caminho com a sua buzinadela constante. Lá fora carros de bois, míudos a tomar banho no rio, mulheres a caminhar à beira da estrada, a cara coberta de tanakha. Três amigos em cima de uma só mota, rapazes com madeixas côr-de-rosa no cabelo, cargas insólitas sobre rodas, seja duas ou quatro.

E eis que, sem querer, vi o que o homem trazia dentro do pano.

Não era "a" pistola. Não era um rim comprado no mercado negro. Não era o elixir da eterna juventude roubado aos deuses hindus. Era dinheiro. Maços de notas. Mais de vinte centímetros de altura, se empilhadas. Quanto dinheiro é que ele trazia ali? E para quê?

Será que ia comprar a pistola?

Não admira que estivesse tão nervoso.

Entrou um vendedor e distraiu-me deste raciocínio com os seus pregões de voz rouca. Quando saiu, o miúdo do autocarro atravessou o corredor com o seu Brise, uma constante ao longo desta viagem. Quando arrancámos, ainda em Yangon, tinha-me sabido bem o aroma. Mas depois de não-sei-quantas horas de estrada, com o calor e o suor e os nervos à mistura... deixa lá o Brise, rapaz.

Que enjoo.

O potencial assassino de uma figura pública desceu do autocarro umas três horas depois de entrar. Apressado, como se fosse suposto já ter saído na paragem antes. Que nervos, só de olhar. Fora o cheiro, mas disso prefiro não me lembrar mais.

Saiu um - entrou outro. Felizmente muito mais asseado. Sorriu e eu sorri de volta, depois esteve algum tempo a trocar mensagens com alguém... mas nada de armas, dinheiro nem fotografias da próxima vítima. Quando o autocarro parou para uma pausa explicou-me que tínhamos vinte minutos, apontou-me a casa-de-banho e quando voltei tinha um cafezinho à espera. Impecável, de uma simpatia desinteressada típica aqui na Birmânia, e por muito que eu insistisse não me deixou pagar o café. E ainda queria disponibilizar-me o seu hotspot, para eu ir ao facebook e mail - mas eu agradeci e expliquei que tinha um SIM birmanês, e que tenho 3G. Sorriu quase como um pai orgulhoso pelo feito do seu filho. Que espectáculo.

Ah: e fiquei também a saber que estávamos ligeiramente atrasados, e que a viagem de sete horas afinal ia demorar oito. Já tinham passado cinco. Podia ser pior.

Quando chegámos finalmente a Pyay, meti-me numa carrinha-de-caixa-aberta-com-gaiola e lá fui até ao hotel. Nada de especial. Caríssimo, para aquilo que se tem em troca. O que infelizmente também é típico, no Myanmar.

Mas uma história de cada vez.

3 comentários:

Louis Peter disse...

As tuas histórias têm tanta emoção como as do inglês! E são 100% verdadeiras! Abraço

Clara Amorim disse...

As tuas histórias, que é como quem diz peripécias, são sempre extraordinárias!!!
Grande abraço desde Cracóvia!

Francisca disse...

Adorei o caminho da tua imaginação!! :)) (Y)