30/05/2015

KARMA?

Como já disse: foi uma tarde extenuante, aquela passada junto à cancela e no gabinete do comissário da polícia, rodeados de fábricas e poeira, camiões barulhentos e rostos tristes sujos de óleo. Mas estávamos finalmente entregues a nós próprios, às nossas vespas e à estrada a rolar debaixo delas  - e assim sim, devia ser a viagem. Agora só queríamos chegar à praia que definiramos como meta, encontrar um hotel com duche, comer e dormir.

O sol já ia baixo no horizonte poluído, parámos para consultar o GPS, "vamos por ali".

Enchemos os depósitos e arrancámos na direcção sugerida, mas na primeira vez que abrandámos por causa de uma lomba, a minha vespa foi-se abaixo. Que estranho... mas dei ao kick e continuámos. Pouco depois, num cruzamento, abrandei... e repetiu-se a brincadeira. Mas desta vez a mota não pegou logo. Tentei duas, três, quatro... só à quinta ou sexta vez ela voltou a arrancar.

Alguma coisa não está bem.

Avançámos por uma estradinha muito engraçada, que sepenteava entre campos de arroz e palmeiras, parecia o Kerala mas um bocadinho mais "deslavado" - muito giro, de qualquer forma. Algumas aldeias pelo meio, manadas de búfalos a partilhar a estrada com as motas, grandes fardos de palha e mulheres a carregar bilhas de água na cabeça. Alguns buracos mas em geral estava em boas condições, o piso.

O sol pôs-se, finalmente, e o céu assumiu cores dignas de se fotografar. Foi o que fiz: parei a mota e desliguei o motor, fiz algumas fotos ao recorte de palmeiras contra o céu azul, roxo e rosa... e depois voltei a montar-me e dei ao kick... mas nada. Outra vez. Nada. Três. Quatro. Só voltou a pegar à sétima tentativa. Que nervos. Isto nunca me aconteceu. O que será? Arranquei. Estava a escurecer por isso acendi as luzes... mas nada.

"Luís!," chamei enquanto buzinava. Ele parou e olhou para trás, eu fiz sinal a dizer que estava sem luz. Nem queria acreditar. Esta mota tem dado pouquíssimos problemas - e é logo hoje, logo agora!, que me vai deixar "agarrado"?

Resultado: os últimos vinte quilómetros do dia - ou melhor, da noite! - tive de os fazer às escuras, sempre atrás do Luís, com cuidado redobrado por causa dos buracos, lombas, pedras e tudo à nossa volta, incluindo pessoas, animais, carros e outras motas. Que stress.

Que karma!, pensei a certa altura. Cheguei a pensar em dar a desculpa das luzes aos seguranças da cancela. Não o fiz para não atrair más energias: não fosse depois ficar mesmo sem luzes. E não é que aconteceu mesmo?

Eu prefiro pensar que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mas que é frustrante. Enfim.

Quando finalmente chegámos à praia (e que maravilha, sentir no rosto o fresco aroma da maresia!), estava tão tenso que quase me deixei cair na areia cheia de lixo. Encostei-me à mota e, desculpem-lá-eu-sei-que-não-devia-dizer-isto, mas acendi um cigarro e soube-me a um duche depois de vários dias sem tomar banho.

:)

Cinco minutos para recuperar.

Noite cerrada - agora temos de encontrar um quarto. No caminho para a praia não vimos nada; e às pessoas a quem perguntámos, todas nos apontaram o mesmo. Um resort do Estado mesmo em frente à praia. Ali ao lado, portanto. Era a única construção à vista.

Tentei ligar a mota - sem sorte. Cinco, seis, sete vezes. Oito. Nove. Nada. Nenhum dos dois tinha energias para fazer fosse o que fosse. E no meu caso: nem energias nem conhecimento. Empurrei a mota até ao portão do resort, entrei e estacionei à frente da recepção, ao lado da vespa do Luís.

Se durante o dia tínhamos sobrevivido a filme da saga Mad Max, agora estávamos prestes a entrar num episódio do Twin Peaks. Mas com vista para o mar.

Que lugar estranho. Primeiro não tinham quartos, "estamos cheios". Mas quando insistimos e explicámos da mota avariada, etc - de repente materializou-se um bungalow. Um bocado acima do budget - mas só de pensar que o próximo hotel ficava a mais de vinte quilómetros. Mais tarde percebemos que o lugar estava quase vazio. Que esquisito. Um dos empregados aparecia quando menos se esperava, para ficar a olhar para nós sem dizer nada; mas quando precisávamos dele, raramente o encontrávamos. E não só não se descalçava quando entrava no quarto (como é costume na Índia) como subiu várias vezes para cima da mesinha de cabeceira com os sapatos calçados, para ligar o ar condicionado. Mesmo depois de eu fazer sinal a desaprovar, ao que reagiu com uma expressão que dizia "vá lá, só desta vez". Quando pedimos toalhas trouxe umas imundas... e molhadas. Mandámo-las para trás e quando voltou com outras, "estas estão limpas", estavam secas mas cheias de manchas. Não vale a pena, a sério. E não é uma questão de ser esquisitinho ou de estarmos mais cansados e por isso com menos poder de encaixe.

Índia, tu és um desafio que, às vezes, não apetece nada confrontar.

E nem vou falar do restaurante. Os ritmos dos eventos, as lógicas dos acontecimentos, causas e consequências - todo o ambiente nos transportava para um filme do David Linch. Quando, por esta altura, só apetecia algo levezinho, quem sabe um filme da Disney - ou até, nem me importo se não houver mais nada para ver, uma comédia romântica "daquelas".

28/05/2015

TERRORISTAS... NÓS?! (3)

"Quero ver os documentos das motas", anuncia o comissário da polícia com o tique no olho direito. É-me difícil olhar directamente para ele, com a ansiedade toda acumulada.

Levantamo-nos e saímos do gabinete escoltados por dois polícias, caminhamos até às motas e começamos a tirar os elásticos que prendem as mochilas.

"Agora é que estamos lixados", diz o Luís enquanto procura pelos papéis.

"Não digas isso, temos tudo em ordem."

"Mas os meus documentos não são tão convincentes quanto os teus. Se ele quiser embirrar, pode pegar em qualquer coisa."

Ah: e nenhum de nós tem carta.


PARTE 3
TUDO ESTÁ BEM...

..quando acaba bem, diz o ditado. Mas para os indianos este ditado não se fica por aqui. Na Índia, acrescenta-se normalmente a frase "e se não está bem, é porque ainda não acabou".

E este episódio ainda não acabou, claramente. Voltamos a entrar no gabinete com ar condicionado, onde estamos há dez minutos. Já repetimos a lenga-lenga que foi o argumento desta tarde. Como fomos ali parar, porque estamos nesta estrada e não noutra maior, quem somos e o que fazemos. As mesmas perguntas, as mesmas respostas. Mostrámos os passaportes, o comissário tirou fotos à página de identificação, mais à página do visto - e a nós. Smile! Só falta tirar uma selfie. E agora os documentos das motas. Quer perceber se são mesmo nossas, se a nossa viagem é real. Começo por dar-lhe o livrete, depois o seguro, a declaração de venda, a autorização da circulação, o certificado de poluição - a certa altura tem tantos papéis à volta... que está nitidamente "aos papéis". Tenta manter uma aparente confiança que desmascaramos desde o início. Está no papo, pensamos.

Mas há uma preocupação que me atormenta, e não é o ficarmos ali retidos ou não. Tenho a certeza que, mais cedo ou mais tarde, eles vão acabar por nos deixar ir embora. Somos inocentes e já deu para perceber que eles sabem disso. Mas a insistência em verificar o visto, e agora em registá-lo com a entidade da emigração, ou qualquer coisa do género... a minha maior preocupação, neste momento, é que no futuro, pró ano ou noutra altura qualquer, quando for fazer o visto para nova visita à Índia, esteja alguma coisa registada que me possa trazer problemas. E se, depois deste mal-entendido, nunca mais me dão o visto?

Neste momento, o nosso objectivo é não registar coisa nenhuma.

O comissário viu os papéis e nem pediu os do Luís, felizmente. Entretanto chegou o chai e ele pediu que o tomássemos com calma, e por momentos parou o interrogatório. Depois quis saber o itinerário. Explicámos que começámos no Kerala, enumerámos cada paragem, onde dormimos, o que fizemos. Até fui buscar o computador à mota, sempre escoltado por um polícia, não fosse sacar de uma bazuca ou uma granada. Sabe-se lá.

O comissário insiste no registo dos nossos passportes. Faz uns telefonemas que não dão em nada, mas não cede. Diz que temos de ir a Nellore, nem-sei-bem-onde, e que temos de registar os vistos e que depois não teremos mais problemas, porque "eles" avisam-se uns aos outros a dizer que estamos a viajar pela Índia... uma treta! Não fazia sentido nenhum, obviamente que estava a insistir nisto por teimosia, e por desconhecimento de como as coisas funcionam. Nunca, em quase-quinze anos de visitas à Índia, tive de registar o visto, fosse onde fosse.

Calma, rapazes. Isto resolve-se.

Explicámos-lhe que ia ser um transtorno enorme, ir dali a Nellore, a esta hora; e que depois ainda íamos fazer o percurso até à praia... que estávamos desde as seis na estrada, sujos e com fome e com sede - a mesma conversa que tivemos antes com os guardas da cancela.

"Ok... mas podem ir lá amanhã de manhã."

What? Ok: este vai ceder.

Por esta altura, tínhamos recuperado a confiança. Ao ponto de, enquanto ele falava ao telefone, nós conversávamos em português à vontade, a delinear estratégias. Mas não vos vou chatear mais com isso. Porque estratégias à parte, o importante é que, poucos minutos depois, deu-se uma reviravolta qualquer e já não era preciso registar coisa nenhuma.

"Sorry for the inconvenient", foram as palavras.

A sério? Mas podemos ir embora mesmo? Não precisamos de fazer mais nada - é só sair daqui, montarmo-nos nas motas e arrancar?

"Lembram-se do caminho? Precisam de escolta? Se quiserem posso pedir a alguém para vos acompanhar, penso que uma das motas está sem gasolina..."

Não é preciso, amigo. Nós lembramo-nos bem. E com um aperto de mão e toma lá os documentos de volta, saímos do gabinete com ar condicionado e preparámo-nos para ir embora. A atmosfera ficara tão descontraída que ainda voltámos para tirar uma foto com o senhor - mas já estava ocupado com outras pessoas, a resolver seja lá que problemas. Demos ao kick e saímos dali sem olhar para trás, com dez ou quinze ou vinte pessoas a olhar para nós, estupefactos por verem ali estrangeiros, ainda por cima com aquele aparato todo de vespas e bagagem.

Atravessámos novamente as fábricas e os pântanos, esta existência triste de Mad Max - pela primeira vez, com um sorriso de orelha a orelha. Apesar de ter tirado fotografias aos passaportes, duvido que o senhor vá fazer alguma coisa com aquilo. Estamos confiantes que nada disto afecte viagens futuras.

Não sabemos para onde ir, mas não nos atrevemos a parar até estar longe dali. Passámos uma cancela e ninguém nos disse nada, saímos da periferia de fábricas e fumo, vimos a cancela original onde tudo começou e nem nos aproximámos. Só parámos as motas na aldeia à frente, dois ou três quilómetros depois. Então pudemos finalmente rir e respirar fundo. Que experiência, esta!

Foi uma tarde extenuante, temos as energias completamente em baixo e agora só queremos chegar à praia, encontrar um hotel, comer e dormir. O sol já está muito baixo. O GPS mostra-nos por onde ir.

Tudo está bem quando acaba bem?

Isso queríamos nós.

Podemos estar finalmente "safos" do interrogatório e das suspeitas de espionagem industrial, mas ainda não acabaram as peripécias deste longo, cansativo e muito intenso dia. Mas por uma questão de organização de ideias... vou deixar esta viagem final para outro post. Já conversamos.

TERRORISTAS... NÓS?! (2)

"Vocês têm de compreender que estou só a fazer o meu trabalho."

Ok. Temos o Polícia Bom. Felizmente é o que fala inglês. Mas o outro não desiste. O Polícia Mau já nos obrigou a apagar fotografias da câmara (felizmente não tínhamos nada das fábricas, mas mesmo assim tivemos de apagar duas ou três), copiou os dados do passaporte e do visto indiano. Já nos tiraram fotografias. Estamos aqui há vinte minutos e não aconteceu nada. Não nos deixam ir embora.

PARTE 2:
QUEM ESPERA...

"Eu entendo, mas está um calor infernal e nós estamos na estrada desde as seis da manhã. Estamos cansados, sujos, com fome e com sede. Só queremos chegar ao nosso hotel e tomar um duche."

Oferecem-nos cadeiras para nos sentarmos à sombra, copos de água. A senhora agente até nos ofereceu fruta-caju. Não nos podemos queixar de estar a ser maltratados. Mas este é o último lugar onde nos apetece passar a tarde.

"E onde é que está o superior que chamaram?"

Tentamos manter a calma, stressar não vai ajudar nada. Mas de vez em quando convém mostrar alguma firmeza.

"Cinco minutos."

Olhamos para o relógio. Passou meia hora.

"Cinco minutos? Disseste cinco minutos há quinze."

"Está a caminho."

Entretanto explicamos a situação dos outros que nos chamaram, e que nós pensámos serem só mais uns a querer chatear. Pedimos ao polícia para lhes ligar, para confirmar a história. E pensando bem no assunto... porque não vieram atrás de nós, se este lugar é de segurança tão apertada? Isto é uma grave falha da segurança. Nós não passamos de vítimas de uma falha de segurança!

Calma, Jorge. Não interessa nada ir por aí. Temos de nos manter serenos e resolver isto da melhor forma. O calor aperta, estão quarenta e cinco graus e isso não ajuda a manter o raciocínio "limpo". Calma.

Passou uma hora.

Passaram mais dez minutos.

Já explicámos que temos uns trinta quilómetros pela frente, que passa das quatro da tarde e daqui a uma hora começa a escurecer. Somos apenas turistas que foram parar ao lugar errado. Só queremos ir para o hotel. Ainda ponho a hipótese de dizer que tenho as luzes avariadas, mas a) ainda me pedem para confirmar e depois é pior, constatar que funcionam; e b) ainda invoco um mau karma qualquer e depois as luzes avariam mesmo. Não disse nada.

Uma hora e um quarto, uma hora e vinte. Foi o tempo que ficámos neste posto de controlo. Até que apareceu um jipe e uma mota. Parecia um filme. A porta abriu-se à nossa frente e saiu um cinquentão de barriga grande, todo vestido de branco, óculos escuros e bigode. À Bollywood. Ou melhor: à Tollywood, que é o Bollywood do sul da Índia.

Estende-nos a mão e cumprimentamo-lo.

"Então contem lá o que vem a ser isto."

Como é que se explica a um gajo destes o facto de estarmos a viajar pela Índia... por uma estrada de terra batida, por atalhos que não fazem sentido (pelo menos aos olhos dos indianos).

"Mas porque não foram pela autoestrada? Não percebo o que estão a fazer aqui, sinceramente."

"Não gostamos dos camiões. Fugimos muitas vezes às estradas grandes para irmos com mais calma, mais relaxados, e às vezes o GPS manda-nos por caminhos... hmmm... mais alternativos."

Voltamos a contar a história dos gajos que nos chamaram, voluntariamo-nos para tirar as mochilas das motas e abrir tudo à frente deles. Somos só uns turistas, aparentemente um bocado tontos, mas é só isso que somos. Adventurists, é a palavra que os ouvimos dizer várias vezes, entre outras que não fazemos ideia do que signifcam. Sim, é isso mesmo: somos adventurists.

"Sigam-me, se faz favor", diz sem expressão no final de cinco minutos de conversa.

"Mas vamos onde?", pergunto com calma, mas firme.

"O gabinete do comissário da polícia fica mais à frente. Precisamos de confirmar os vossos vistos."

Ok: por um lado, temos aqui um desenvolvimento. Implica que vamos passar para o lado de fora da zona do "crime". Mas fugir não é uma opção. Temos de resolver isto Bem Resolvido. Por outro lado, isto de cinfirmar vistos, etc. Temos tudo em ordem, mas não convinha nada termos os meios oficiais a registar que somos suspeitos de espionagem industrial. Ou terrorismo.

Enfim: não temos outra opção. Vamos atrás deles. Mas não sem alguma emoção extra pelo caminho. A meio de uma recta, rodeados por pântanos e lixo e alguns arbustos mortos, a vespa do Luís foi abaixo. Sem explicação.

"Se calhar entrou na reserva!", grito do sítio onde parei. Cem metros à frente do Luís, cem metros atrás do jipe e da mota, que começa a dar meia volta.

"O que se passa?", pergunta-me o polícia.

"Não sei... se calhar é a gasolina."

A mota pega e arrancamos novamente. Mas apenas por duzentos metros. Volta a parar. Os polícias estão visivelmente nervosos. O que não é de estranhar. Isto tem todo o ar de sermos nós a ganhar tempo. Alguma coisa não está bem aqui, devem pensar eles. E nós também já ansiosos, sem saber o que fazer.

"Não é a gasolina, Jorge!", diz-me o Luís.

"Mas experimenta... eu também estou quase a entrar na reserva."

E o polícia ao meu lado:

"Ele que deixe a mota aí. Vem contigo, ou vem a três connosco. Vamos embora!"

E de repente a mota pegou outra vez. Era mesmo da gasolina. Que susto. O Luís a rir e eu a rir, e os polícias com cara de desconfiados. Avançámos então para o centro deste mundo triste. Passámos por nova cancela, desta vez sem problema porque vínhamos escoltados, e se antes víamos muitos camiões, agora era um exagero. Que corropio. A estrada toda suja de pó preto e lama preta, nos separadores praticamente já nem se distinguem as riscas amarelas. Fábricas por todo o lado, gente suja com olhar triste. Nós somos o único apontamento de cor neste lugar. Nós - e a casinha onde fomos ter. Uma vivenda verde com um pequeno parque de estacionamento à frente, onde parámos as motas sempre sob o olhar frio e atento de dois polícias. Qualquer movimento, qualquer coisa que de repente caía ao chão. Que nervos.

O jipe entretanto desaparecera.

"Ainda acabamos a jantar com eles, vais ver", disse-me o Luís antes de sermos escoltados para dentro de casa.

Eu percebi o que ele queria dizer. Além de toda a rigidez com a segurança, havia aqui o omnipresente factor indiano da "curiosidade". Algum deslumbre, diria. Tínhamos os olhos todos em nós, na forma como reagíamos, naquilo que representamos de ameaça mas também de sonho, de algo extraordinário. Os indianos ficam sempre muito surpreendidos com a nossa viagem. Por ser em vespas em vez de motões; por estarmos a fazer uma rota completamente fora do circuito clássico; porque vamos um bocado sem destino; e porque optamos muitas vezes pelas estradas pequenas, em vez de ir directos pelas "autoestradas".

Abre-se a porta e recebemos no rosto a deliciosa sensação de um ar condicionado. Já valeu a pena vir aqui.

"Sentem-se", diz o quarentão por detrás da secretária. Tem um tique que o faz piscar o olho direito cada vez que começa uma frase nova.

"Querem um chai?"

OK: pode ser que isto afinal seja mais soft do que estávamos à espera.

Ou não.

Preciso de mais uma pausa... este calor entranha-se até entre os dedos. Apesar de estar neste momento num quarto com o ar condicionado. Enfim: já continuo com o relato.

TERRORISTAS... NÓS?! (1)

"Onde é que estão as vossas autorizações?", pergunta com frieza o segurança fardado, enquanto tudo à nossa volta derrete. Olho para o Luís, o Luís olha para mim. Incrédulos. Isto não pode estar a acontecer. Temos três seguranças fardados à nossa volta, mais outro a segurar numa cancela, para ter a certeza que não fugimos. O calor, de intensidade bíblica, nem nos deixa pensar.

"Onde é que estão as vossas autorizações?", repete quando lhe explicamos que não temos autorizações, somos apenas turistas a viajar de mota. Mas como é que se explica a um agente da autoridade o facto de termos atravessado uma zona de segurança máxima, aparentemente em redor de uma central nuclear, sem ter quaisquer autorizações.

Voltemos atrás, portanto.

Eu ainda não tinha falado sobre isto... mas isto aconteceu há quase uma semana. Caso não tenham reparado, estive três dias sem dar notícias no blog.

Vamos então ao desenrolar do drama, a história é longa por isso vou dividir isto em três partes, se não se importam.

PARTE 1:
QUEM SE METE POR ATALHOS...

Isto de sair da estrada e seguir o GPS por estradinhas pequenas e mais "genuínas"... até agora tinha sempre corrido bem. Uma ou outra peripécia, como daquela vez que tivemos de pedir ajuda para passar as motas por cima dos carris do comboio, pois não havia caminho - mas até agora, nunca nos "meteramos em trabalhos" por causa de um atalho.

Pois bem: este foi o dia em que o provérbio se impôs no nosso Destino.

Depois de uma manhã inteira a atravessar paisagens feias e tristonhas, rodeados de indústria e lixo e camiões, sempre a fazer pequenas paragens para beber água e reforçar o protector solar - metemo-nos por uma auto-estrada para ver se avançávamos um bocadinho mais depressa. O asfalto era óptimo, de classe internacional, de repente parecia que estávamos a viajar num país qualquer europeu.

Parámos cedo para almoçar, numa zona de serviço com muito bom aspecto. O restaurante tinha ar condicionado e, como de costume, mais empregados que clientes (apesar de estar quase cheio). Comemos muito bem, bebemos muita água, descansámos e "queimámos tempo" para ver se a hora pior do calor passava. Isto está mesmo complicado. Mas a certa altura os empregados começaram a pressionar, havia clientes à espera e nós ali à conversa... trouxeram a conta e lá acabámos por voltar à estrada. Deviam ser umas duas e meia, quase três.

O ar era como que fogo invisível.

Enrolámos uns panos à volta da cara, como os locais. Enchemos os braços e qualquer pedaço de pele exposta com protector e enfiámos os capacetes. Vamos lá embora!

Que calooooor! Já faltava pouco para atingirmos a meta do dia: uns quarenta quilómetros, pois já tínhamos feito mais de cem. Isto agora é a recta final, mais uma ou duas horas e estamos na praia!

Mas queríamos evitar o trânsito em Nellore, a cidade que era preciso atravessar se continuássemos pela autoestrada, para depois desviar para a praia. No mapa, imaginem um ângulo recto. Procurámos no GPS por caminhos alternativos, portanto. E havia um que atravessava, em diagonal, do sítio onde estávamos até à costa, já perto da praia onde queríamos ir. Perfeito!, pensámos.

Saímos então por um caminho cheio de buracos, com a esperança de que viesse a melhorar. Mas não. Dez minutos depois já estávamos arrependidos de ter feito aquele desvio. Eram mais o buracos que o asfalto - e pouco depois já nem asfalto, era só pó e lixo. O ar continuava quente como o interior de um forno. Os camiões deixavam um rasto de poeira que procurávamos evitar a todo o custo, mas sem grande sucesso. Os olhos ardiam, a boca estava sempre a pedir água, todo o corpo suava. Mas continuámos. Sempre na esperança de que o caminho ia melhorar, continuámos.

E quanto mais continuávamos, menos apetecia voltar para trás.

Entretanto tinham aparecido umas fábricas no horizonte, mas nem valorizámos muito. Lembro-me de ter pensado que a praia provavelmente não ia ser nada de especial, tendo em conta que havia tanta indústria ali ao pé. Mas continuámos. Cada vez havia mais camiões, muros com cercas e arame farpado, grandes portões de um lado e do outro, acessos a esta e quela fábrica. Mas o GPS mandava seguir em frente, e a estrada seguia em frente, e nós continuámos em frente. Porque não?

Até que aconteceu algo que desvalorizámos, na altura, mas que se viria a provar o momento-chave do dia. De repente a estrada de terra batida e pó transformou-se num piso de alcatrão em boas condições. Rimos um para o outro, sem dizer mas a pensar "finalmente!", e lá avançámos por onde o GPS mandava. Ouvimos uns rapazes a chamar e a dizer "Hallo!", perto de um casinha, olhámos para eles e alguns estavam deitados, outros sentados, um ou dois levantaram-se a acenar - mas acenar e chamar e dizer "Hallo!" é o pão nosso de cada dia, estamos constantemente a ser solicitados, a curiosidade em conhecer estrangeiros é muita, pois não passam muitos por estas zonas. Ou seja: dissémos adeus e continuámos. Eles não insistiram e não ligámos mais ao facto. Virámos pouco depois por uma espécie de via rápida suja de petróleo e lá fomos.

A partir daqui a vegetação seca e triste que nos acompanhava começou a rarear. Muitos campos vazios, uma espécie de pântano cinzento, cheio de lixo, praticamente sem vida. Durante algum tempo tivemos a sensação de estar num filme do Mad Max, num cenário de um futuro pós-apocalíptico, com muito pouca vida além dos camiões sujos e barulhentos. Atravessámos uma ponte e pouco depois chegámos a uma cancela de um caminho de ferro que estava fechada. Parámos as motas à sombra e esperámos. As pessoas que se foram acumulando ali tinham todas um ar triste. Tinham o rosto e a roupa cobertas de pó preto, de nódoas de petróleo. O ambiente era tão estranho que não nos surpreenderia se aparecesse de repente o Mel Gibson - ou, para ser mais actualizado, a Charlize Theron.

Lá atravessámos o caminho de ferro, continuámos com vista para as fábricas, só queríamos deixar esta zona para trás, tão depressiva. Eu tentava abstrair-me e pensar em palmeiras e areia branca e fina entre os pés... mas confesso que com pouco resultado.

E eis que de repente a estrada leva-nos na direcção de um portão com uma cancela. Que estava fechada. Um carro tinha acabado de parar e uns seguranças falavam com as pessoas lá dentro. Parámos um pouco mais atrás, debaixo da única sombra":

"Será que estamos no caminho certo? Espreita lá o GPS outra vez, se calhar era por aquela curva lá atrás. É que isto parece-me ser a entrada de qualquer coisa."

Era uma entrada, era. Mas para quem vem do outro lado.

À nossa frente estava um dos acessos a uma zona industrial com instalações nucleares, guardada por seguranças e sujeita a uma autorização especial para se atravessar. E nós estávamos do lado de dentro... a tentar sair. Mas disso nós ainda não sabíamos.

Avançámos na direcção da cancela, que se tinha levantado para deixar sair o carro. E imediatamente fomos rodeados por três seguranças - dois homens e uma mulher -, enquanto um quarto agente baixava a cancela.

"Onde é que estão as vossas autorizações?"

"Quais autorizações? Nós só queremos ir para a praia de Não-Sei-Quê, podemos passar? "

"Vocês estão em propriedade industrial. Para entrar aqui precisaram de receber uma autorização. Onde está?"

E de repente "caiu a ficha".

Aqueles rapazes deitados com ar de quem não tem nada mais interessante para fazer. Aqueles que gritaram "Hallo!" mas que também não insistiram muito... nem vieram atrás de nós. Aquela era a entrada? Nem cancela tinha? E se tinha, estava aberta, nem a vimos.

"As vossas autorizações?"

Preciso de beber água, que o calor aperta. Já continuo.

TÁS A OLHAR?

Continua este calor mortal, eu não sei onde aqueles que continuam com a sua vida "normal" vão buscar força, energia e loucura. Custa, só de ver, pessoas a trabalhar ao sol.

Ainda agora fui fazer a barba e soube tão bem todos aqueles cremes fresquinhos que eles põem na cara, mais a ventoinha apontada para mim; e depois a massagem à cabeça. Estou nas nuvens. Estou como novo.

Mas voltando ao calor: isto tem afectado a viagem, claro. Não aproveitamos tanto. Andamos mais cansados. Poupamo-nos mais. A ver se passa depressa, para ganharmos fôlego outra vez.

Vou tomar (mais) um duche, agora. Mas o que mais apetecia agora era um mergulho num rio fresquinho e limpo, se faz favor. E se tiver uma cascata, perfeito.


27/05/2015

SÓ NA ÍNDIA #08

No outro dia fui levantar dinheiro: entrei na cabine do ATM e estava um rapaz sentado em cima da máquina a consertar o ar condicionado. Fiquei a olhar para ele com cara de desculpa-lá-interromper-mas-tenho-mesmo-de-levantar-dinheiro... e ele fez o quê?

Afastou o pé do ecrã da máquina e continuou a trabalhar, como se nada fosse.

Só na Índia! ;)

SÓ NA ÍNDIA #07

Uma igreja, um templo hindu e uma mesquita... tudo no mesmo edifício? Só na Índia:



2000KM!

O Luís já tem cinco mil, desde que começou as suas voltas na Índia.

Mas a dois, passámos hoje a barreira dos dois mil quilómetros nas estradas indianas. Curiosamente, um dia antes de completarmos um mês a viajar, desde que arrancámos de Vennikulam. Tantas histórias e encontros, tantas paisagens e alcatrão, buracos e lombas, camiões e riquexós, bicicletas em contra-mão, templos de todas as cores, sorrisos e trombas, comida picante, ventoinhas a rodopiar no tecto, you coming from?


E o calor. Ultimamente é o calor quem tem dominado a viagem, condicionado, complicado, obrigado a adaptações. Isto não está para brincadeiras.

26/05/2015

ESTE CALOR MATA

Mais de oitocentas pessoas em menos de uma semana.

Quinhentas e cinquenta, só em Andhra Pradesh - o estado que estamos a atravessar neste momento.

É incontornável, o calor. Abraça-nos vinte e quatro horas por dia - com toda a força, com um desespero que assusta.

Chegou aos 47º, hoje.

E felizmente ainda não começaram com os cortes de energia, como se prevê que venha a acontecer em breve. Por enquanto ainda nos podemos socorrer do ar condicionado. E nós dois, que normalmente optamos por quartos mais simples só com ventoinha, neste momento não há como contornar a questão. Por muito que não se goste de ar condicionado, por muito que seja preciso pagar mais... neste momento tem mesmo de ser.

Nem quero imaginar o que estão a sofrer aqueles que não têm a sorte de beneficiar das mesmas condições. E os velhotes. E os que vejo a trabalhar na rua, ao sol. É um facto que algumas pessoas parecem "não estar nem aí"; mas o calor é mesmo incontornável. Andamos a beber cinco litros de água por dia, cada um. Às vezes mais. Só viajamos de manhã. E quando paramos para procurar alojamento, normalmente já está insuportável.

Amanhã saímos às seis da manhã. O despertador está já ligado para as cinco e meia. Nem sabemos muito bem para onde vamos... é para avançar até onde der, e logo-se-vê.

Leiam mais sobre a vaga de calor aqui.

UM MOMENTO COLORIDO

No dia a seguir à rapadela em Tirumala, o calor era de tal forma sufocante que não tivemos coragem de subir novamente à colina, só para ir ver o templo. Ou seja: acabámos por nem visitar a atracção principal - mas a experiência que vivemos foi única, e muito sinceramente não fiquei com a sensação de ter falhado alguma coisa. Se calhar era mesmo assim que era suposto acontecer. Se calhar o Universo organizou-se de tal forma que o importante nesta experiência não era, de todo, ver o templo. Nós fomos ali a Tirumala, nós viajámos centenas de quilómetros desde o Kerala, nós viemos para a Índia, nós somos viajantes... tudo por este momento. Toda a nossa vida culminando neste Aqui, neste Agora.

Ok: estou a exagerar. Um bocadinho.

Mas tudo para explicar que, com templo ou sem templo - valeu o que valeu. Por isso, no dia seguinte, só a ideia de subir outra vez à montanha, única e exclusivamente para ver mais um templo - não. Não apetecia mesmo nada.

E fizemo-nos à estrada.

Mal acordámos, fizemo-nos à estrada.

Do hotel para a bomba de gasolina, da bomba de gasolina para um pequeno restaurante onde tomámos o pequeno-almoço, e desse restaurante para a estrada. Meta final para hoje: praia!

Queríamos acabar o dia com os pés enterrados na areia, o cheiro da maresia a enfeitar os nossos sorrisos, o jogo de luz e sombras de um coqueiro na praia... mas mal sabíamos o que nos esperava.

Mas comecemos por onde se deve começar: o princípio.

Avançámos estrada fora por uma paisagem seca e feia, algumas fábricas aqui-e-ali, a vegetação muito seca, mais camiões do que aqueles com quem gostaríamos de partilhar a estrada. O pequeno-almoço não tinha caído muito bem: o chá estava queimado e o puri parecia fora de prazo. O calor, apesar de ainda nem serem nove da manhã, era já insuportável. Não se via quase ninguém na rua, provavelmente estavam resguardados dentro de casa. Havia qualquer coisa de triste neste postal - e obviamente os nossos espíritos começaram também a ressentir-se.

Mas houve dois momentos que nos levantaram os ânimos.

Curiosamente: dois encontros no feminino.

Primeiro uma rapariga de doze anos, que trabalhava numa lojinha junto à estrada, onde parámos para pedir água e biscoitos. Falava um inglês impecável, era muito esperta e tinha muita piada. E em vez de cinco ou dez minutos ficámos ali à conversa com a miúda durante meia hora, talvez mais.

E depois o momento mais colorido do dia. Algures a meio da manhã parámos debaixo da sombra de uma árvore, para consultar o mapa e beber água - e por coincidência estava uma grupo de mulheres a plantar arroz ali ao pé.

Nem sei bem como começou. Provavelmente elas olharam para nós, nós para elas, depois dissemos adeus e elas responderam. Deve ter sido assim. Mas desta vez o momento evoluiu para algo mais. E não, não estou a falar "desse" algo mais. Calma. ;)

Uma das senhoras aproximou-se de nós e ficou a olhar para as motas, cheia de curiosidade. Eu não resisti e, sabendo que estavam o dia todo à torreira do sol, dei-lhe a minha garrafa. Ela não estava à espera, sorriu timidamente sem saber se devia aceitar, olhou para as outras no campo (como que a pedir autorização) e finalmente agarrou na água. Agradeceu, desceu até perto das outras e quase todas beberam um pouco.

A partir daqui, perderam a vergonha e vieram todas ter connosco. Nenhuma falava hindi, quanto mais inglês. Mas entre linguagem gestual, algum hindi que eu entendia e por sorte elas também, mais muito boa vontade de todas as partes... a verdade é que comunicámos, ali. E que momento tão bom. O Luís deu-lhes a experimentar os óculos escuros e os headphones, elas riam como se fôssemos uns aliens caídos do céu. Ou uns anjos. Muito, muito engraçado.





Infelizmente, o Universo tinha mais algumas surpresas para este dia - não tão coloridas, não tão alegres.

Mas deixo essas aventuras para amanhã. Estou ainda a organizar ideias e a refazer-me do choque.

QUARENTA E QUATRO

Imagina que:

Tens um arroz de pato no forno há imenso tempo. Estará pronto? Não queres que queime, por isso entras na cozinha e só-para-ter-a-certeza pões-te de cócoras a olhar para dentro do forno. O calor beija-te o rosto, o pescoço, os braços, o peito.

Agora abre o forno e espreita lá para dentro.

Custa-te a respirar, não é? Que inferno. Quase não consegues abrir os olhos, para ver como está o arroz. E o mais normal seria fechar logo a porta do forno e sair da cozinha... mas imagina que:

Imagina que ficas com o forno aberto mesmo em frente à tua cara, a escassos centímetros. Aguentas vinte segundos, trinta, quarenta - e depois fechas a porta. Mas não te mexes: ficas ali à mesma. Bem perto. Mais quarenta segundos, um minuto no máximo. E depois abres o forno outra vez. Mais quinze segundos. Fechas meio minuto. Abres. E aguentas este ritual durante uma hora, duas, três.

Agora esquece o aroma do arroz de pato. Concentra-te na temperatura no teu rosto. Fecha os olhos e pensa que estás em cima de uma vespa, a viajar pela Índia.

Pois.

E se quiseres uma experiência ainda mais autêntica, imagina o cheiro de uma lixeira a arder, mais o fumo de escape de um camião que concerteza não passou na inspecção; e ainda o pó que o vento levanta.

Isto está difícil.

(MAIS) UM DIA QUENTE

Que calor.

Quarenta e quatro, hoje. Que calor.

E, no entanto: vrrruuuummmm!

Já conversamos.

25/05/2015

A LENDA DE VENKATESHWARA

Há muito, muito tempo, quando deuses, demónios, pessoas e animais partilhavam este universo e mais alguns, três filósofos foram em peregrinação até às margens do Ganges, onde se prepararam para realizar um sacrifício a favor da Bondade das pessoas.

Ainda estavam em preparativos e rituais quando apareceu o sábio Narada, a querer saber a quem estavam eles a oferecer o sacrifício.

"Ao mais poderoso de todos os Deuses, meu caro."

Narada não ficou satisfeito com a resposta e quis saber, entre aqueles que formam a Trindade Hindu, qual o que merecia tal sacrifício: Brahma, Vishnu ou Shiva.

Os três filósofos não tinham resposta e pediram então a Bhrigu, conhecido por ter um olho extra na sola dos pés, para investigar acerca deste assunto.

Bhrigu lançou-se à estrada (de vespa, claro) e viajou de imediato até  Satyalokam, onde vivia Brahma. Encontrou-o acompanhado pela sua esposa Saraswati, a recitar os Vedas, cada um com uma das suas quatro cabeças - e ao fim de algumas tentativas sem resposta, Bhrigu percebeu que não havia forma de alguém reparar nele. Concluiu então que, apesar de ter quatro cabeças e oito olhos, Brahma não fora capaz de o ver chegar - logo, não merecia o sacrifício dos três filósofos. E zangado por ter sido ignorado, amaldiçoou Brahma e disse-lhe que nunca receberia oferendas nos templos.

É por isso que não há templos dedicados a Brahma.

Bhrigu montou-se então na sua vespa, que pegou logo à primeira, e dirigiu-se ao Monte Kailasa, onde Shiva vive com a sua mulher Parvati e o boi Nandi - e qual não foi o seu espanto quando encontrou Shiva e Parvati a dançar um com o outro, enquanto Nandi e outros seres olhavam para eles, completamente absortos. Mais uma vez chamou e gritou pelo deus, mas este estava tão concentrado nos olhos e movimentos da sua amada, que não deu por nada. Parvati, por seu turno, apercebeu-se da presença de Bhrigu e interrompeu a dança para avisar o marido. Furioso, Shiva tentou então destruir o sábio - e este, irritado, amaldiçoou-o.

"Não mereces o sacrifício! E por causa das tuas acções, a tua imagem não será idolatrada nos templos."

É por isso que, nos templos de Shiva, reza-se a uma Linga (que tem uma forma fálica).

Mas continuando:

Frustrado por não conseguir qualquer tipo de reacção que merecesse o sacrifício dos três filósofos, lá foi com a sua vespa até Vaikuntha, onde vivia Vishnu. Quando lá chegou, o deus encontrava-se a dormir, com a deusa Lakhsmi a seus pés, massajando-lhe as pernas. Bhrigu ficou convencido que Vishnu estava só a fingir que dormia, para não o receber, e enfurecido pontapeou-o no peito - o lugar onde Lakshmi reside.

Vishnu acordou sobressaltado e, tentando acalmar o sábio, disse-lhe:

"Meu caro, o meu peito é o mais forte do mundo, é como uma montanha... e os teus pés são tão suaves. Estou preocupado que te possas ter magoado enquanto me pontapeavas. Peço-te desculpa, se for o caso."

E começou ele próprio a massajá-lo. Mas durante a massagem, sem querer pressionou com mais força o olho extra na sola de um dos pés - esse olho simbolizava o Ego do sábio - e imediatamente o sábio começou a sentir-se culpado pela forma como tinha reagido. Acalmou e pediu desculpa a Vishnu, montou-se na vespa e lá foi zigue-zagueando pelas nuvens e montanhas até chegar ao Ganges, onde anunciou aos três filósofos que Vishnu era, sem dúvida, o mais supremo da Trindade, e merecedor do sacrifício.

Entretanto, em Vaikuntha, Lakhsmi estava furiosa com Vishnu, depois da forma com que este tinha lidado com a cena do pontapeamento. O peito era o lugar onde ela residia, e sentia-se ofendida com a acção... e com a reacção. Furiosa, fez as malas e encheu o depósito da sua vespa, que demorou um pouco a pegar mas eventualmente lá funcionou. Lakshmi deixou Vaikuntha, para choque de Vishnu, e foi viver para Karavirapur.

Desamparado com a partida da sua esposa, Vishnu decidiu também sair de Vaikunta. Foi à garagem buscar a sua vespa, limpou a vela e deu ao kick três ou quatro vezes... e lá foi. Desceu à Terra reencarnado em Sri Venkatesha e tomou abrigo nas colinas de Venkata, debaixo de um formigueiro, ao pé de uma árvore de tamarindo, junto a um tanque - meditando pelo regresso de Lakshmi, sem comer nem beber.

Assim que souberam do sucedido, Brahma e Shiva decidiram assumir a forma de uma vaca e um vitelo, de maneira a poderem ajudar o amigo, e assim passando despercebidos. Surya, o deus Sol que tudo vê e tudo sabe, informou Lakshmi do que estava a acontecer e pediu-lhe que reencarnasse numa pastora.

"Vais até Chola e pedes para falar com o rei, se faz favor, e dizes que lhe queres vender a vaca e o vitelo."

Dito e feito.

O rei de Chola comprou os dois animais e mandou-os pastar nas colinas de Venkata, juntamente com o resto do gado. E assim que descobriu Vishnu a meditar debaixo do formigueiro, a vaca começou a alimentá-lo, às escondidas, com o próprio leite. O que acabou por tornar-se num problema, porque no palácio a vaca dava muito menos leite que as outras - e, estranhando tamanha diferença, a rainha de Chola convocou o responsável pelas vacas para uma "conversa".

Irritado por levar um "raspanete", o guardador das vacas decidiu espiar a vaca em causa. No dia seguinte seguiu-a, às escondidas, e pacientemente esperou atrás de um arbusto, para tentar entender a causa desta discrepância no leite produzido. E eis que subitamente vê a vaca aproximar-se do formigueiro e, sorrateiramente, começar a derramar o leite ali. Furioso com este estranho e inexplicável comportamento, levantou-se aos gritos e pegou no machado que trazia sempre consigo. Por muito que a vaca se tentasse explicar (era uma vaca, não havia como se explicar), o homem lançou o machado na sua direcção. Mas nesse exacto momento Vishnu levantou-se e, para salvar a vaca, atirou-se para a frente do machado (tudo em câmara lenta e com uma banda sonora dramática).

"Nooooooo!!!"

Enfim, está-se mesmo a ver: o machado foi acertar na cabeça de Vishnu, que perdeu grande parte do cabelo. E o homem do machado, ao ver o deus Vishnu sangrar profusamente, caiu redondo no chão e morreu com o choque.

Entretanto apareceu Neela Devi, que tratava de Vishnu como se ele fosse filho dela - e quando o viu naquele estado, em profunda dor e esvaído em sangue, rapou imediatamente o seu cabelo e poisou-o na cabeça dele. Como que por magia, o cabelo de Vishnu renasceu em poucos segundos, e ainda mais bonito e sedoso. Reconhecendo que o cabelo é uma das características mais estimadas de uma mulher, Vishnu agradeceu o sacrifício a Neela Devi e prometeu-lhe que, a partir desse dia, os seus devotos iriam rapar o cabelo em memória dela, como símbolo de renúncia ao Ego.

Por isso se rapa o cabelo em Tirumala.

E a telenovela continua... mas para o motivo que me fez pesquisar e partilhar esta história, chega-nos bem o que já está aqui escrito. ;)

ANTES... E DEPOIS ;)

Antes:

Depois:

SABIA QUE... #35

...na vila de Tirumala cortam-se cerca de quinhentas toneladas de cabelo humano por ano, que são vendidas a marcas de extensões de cabelos do Mundo inteiro.

Tirumala - uma vila situada nas colinas de Seshachalam, no estado do Andhra Pradesh - é um dos lugares de peregrinação mais impressionantes da Índia. Todos os anos, milhões de peregrinos provam a sua devoção a Sri Venkateswara (uma reincarnação de Vishnu), rapando o cabelo como prova de renúncia ao Ego. Aqui trabalham cerca de seiscentos barbeiros, que rapam o cabelo a vinte mil pessoas por dia.

O ritual acontece no Kalyana Katta (onde eu e o Luís rapámos barba e cabelo), um edifício especialmente construído para o efeito, bem perto do templo principal de Tirumala. E há mais dezasseis "barbearias" espalhadas pela vila. Todos os dias, a toda a hora, milhares de peregrinos sentam-se de pernas cruzadas no chão e baixam a cabeça, enquanto o barbeiro rapa os seus cabelos a uma rapidez incrível - e a custo zero.

O cabelo indiano é considerado, por quem sabe do assunto, um dos mais valiosos do mundo - porque tem uma textura boa e não sofre muito com produtos artificiais. Isto faz com que Tirumala seja o centro de um universo muito lucrativo: o mercado das extensões. Só no ano passado, a fundação que gere o templo teve um lucro de mais de 3 milhões de euros.

Quando confrontados com o dinheiro que o templo faz com a venda do cabelo, a maior parte dos peregrinos desvaloriza a eventual polémica, pois sabem que este reverte a favor daqueles que visitam Tirumala: a administração do templo providencia não só os cortes gratuitos, mas também alojamento para os peregrinos; financia a construção de escolas e hospitais; distribui cerca de trinta mil refeições gratuitas por dia. Até casamentos se podem fazer em Tirumala - tudo a custo zero.

RAPÁMOS O CABELO!

"Este é um ritual há muito associado a Tirumala", explica-nos um barbeiro enquanto à nossa volta dezenas de outros profissionais rapam o cabelo aos peregrinos. "Segundo a tradição hindu, os devotos de Vishnu oferecem o seu cabelo a Sri Venkateshwara, é uma forma de renunciar ao Ego."

Como descrever o ambiente à minha volta?

Estamos numa espécie de pavilhão, um gigante banho turco, todo em pedra com torneiras à volta da sala, iluminado artificialmente com grandes neons brancos. Ouve-se o som da água a correr, o burburinho de pessoas a falar, o raspar das lâminas no couro cabeludo. Uma criança ou outra a chorar. Há algo de triste nisto - mas não posso afirmar que as pessoas estejam, em geral, tristes. Talvez seja do silêncio. Tanta gente no mesmo espaço, em qualquer lugar mas especialmente na Índia, implica mais barulho. Mas o lugar está especialmente calmo. Há qualquer coisa de solene, talvez seja isso. Apesar das pessoas estarem muito descontraídas.

Muito provavelmente, as referências culturais e históricas que carregamos, enquanto cidadão ocidentais, ajudam a esta confusão na "leitura" deste lugar. Logo à entrada, tivemos de serpentear por uma espécie de ziguezague - como nas filas para o aeroporto, mas em vez de baias a separar as filas havia gradeamentos de ferro até ao tecto. Isto tem qualquer coisa de matadouro. Isto tem, desculpem-me a comparação, qualquer coisa de campo de concentração. As pessoas em fila. As grades para controlar a multidão. O silêncio. Os cabelos rapados. Há aqui um peso, um aperto no coração, que só consigo explicar com as tais referências ocidentais. Parece-me uma prisão.

E daí talvez se explique que os indianos pareçam descontraídos, ao mesmo tempo. Para eles, a única referência histórica é religiosa. Isto é apenas um ritual, fazem-no tanto por devoção religiosa como por pressão social e/ou constragimentos familiares. Fazem-no porque sim; porque "faz parte". Teoricamente, um hindu deve rapar e doar aos deuses o seu cabelo pelo menos uma vez na vida.

Mas o que estamos a fazer aqui, afinal?

Os dois de tronco nu, com um sabonete numa mão e uma lâmina na outra. Os pés descalços no chão frio e molhado, fios de cabelo alheio enrolados nos dedos. Olhamos um para o outro e sorrimos, meio tímidos, a pensar "que estupidez esta", mas ao mesmo tempo nenhum tem coragem de dizer "vamos mas é embora daqui", apesar de ambos sabermos que o outro viria sem protestar.

Daqui a nada vamos rapar cabelo e barba, vamos ficar iguais a monges budistas e skinheads neo-nazis... iguais aos peregrinos de Tirumala.

Recuemos um bocadinho no tempo, para perceber como viemos aqui parar.

Sabíamos quase-nada acerca de Tirupati e Tirumala. Lemos qualquer coisa acerca de ser um dos lugares mais sagrados da Índia, visitado anualmente por milhões de peregrinos. Dizem que ultrapassa Roma, Jerusalém e Meca - com uma média diária de quarenta mil visitantes, mais um staff de doze mil pessoas. Incrível. Sabíamos também que muita gente oferecia o seu cabelo a Sri Venkateshwara, como uma espécie de sacrifício. Lemos acerca dos barbeiros - e, como é natural, queríamos assistir ao ritual. E, quem sabe, documentá-lo.

Ficámos hospedados em Tirupati, a cidade que dá apoio logístico a Tirumala; e depois de fazermos de mota a estrada de quinze quilómetros que sobe a montanha, surpreendemo-nos com a dimensão e a organização do lugar. Dezenas de parques de estacionamento, sinalética a informar os peregrinos, tudo muito limpo... e, claro, milhares e milhares de pessoas por todo o lado.

Muitos tinham os cabelos rapados - homens, mulheres e crianças.

Curiosamente, apesar das multidões, o lugar era relativamente calmo. Uma espécie de vila no topo da montanha, equipada com toda a logística e estrutura necessárias à gestão de tanta gente.

Estacionámos as vespas e fomos à procura do templo principal. Sabíamos que ia ser complicado visitá-lo, porque há longas filas de várias horas de espera, mas estávamos confiantes num passe especial para turistas que, em troco de algum dinheiro, garante uma circulação mais rápida.

Tinha escurecido, o calor era agora mais suportável, passeámos por ruas cheias de gente e lojas, sempre à procura do templo - até que vimos um sinal que apontava para a fila de quem vai rapar o cabelo.

Decidimos espreitar.

"Se der para fotografar ou desenhar, podemos fazer uma crónica gira acerca deste ritual."

"Vamos só ver como é."

Descalçámos os sapatos e lançámo-nos numa espécie de corredor pouco iluminado que, em vez de paredes, tinha grades de ferro até ao tecto. Depois começámos aos ziguezagues, dava a sensação de sermos animais no matadouro. Havia mais pessoas, à frente e atrás, mas reinava um silêncio perturbador. Que coisa estranha. A certa altura um homem parado numa passagem pôs-nos nas mãos um sabonete. Um pouco mais à frente, alguém nos dá uma lâmina.

"Isto parece um campo de concentração."

"Vamos só ver como é."

Chegámos à entrada propriamente dita. Uma rampa com acesso a uma porta, dava a sensação de ter uma piscina pública do outro lado, ou um grande balneário. Mas não víamos nada. Apenas o homem sentado à nossa frente, a distribuir umas senhas às pessoas que entravam.

Olhamos um para o outro. Entramos ou não entramos?

"Vamos só ver como é."

Entrámos.

O homem das senhas perguntou-nos se íamos rapar e fizemos sinal a confirmar.

"Depois devolvemos as senhas. Vamos só ver como é."

Passando a tal porta, entrámos num corredor com várias passagens. Todas as portas tinham pesadas grades, algumas fechadas a cadeado, outras abertas. Dava a sensação que estávamos numa prisão. Um grupo de mulheres sentadas a um canto, todas de sari côr-de-laranja... uma versão indiana de Guantanamo?

Pouco depois o corredor dividia-se em dois, com umas escadas que desciam para o "Tonsure 1" e outras para o "Tonsure 2". Os nossos bilhetes indicavam "1". Mas entretanto reparámos numa passagem que ia dar a uma varanda e decidimos espreitar. Abrimos o gradeamento e encontrámos várias pessoas sentadas ou a dormir. Enconstámo-nos ao muro: por baixo de nós estava um pavilhão rectangular, um cruzamento entre um banho turco e um mercado de peixe. É-me difícil explicar. Dezenas de barbeiros sentados à volta da sala, cada qual com o seu "cliente" sentado em frente a si, de cabeça baixa. E atrás desse cliente uma pequena fila de mais dois ou três, em espera. E as famílias à volta. Um ambiente familiar com uma carga religiosa, ao mesmo tempo descontraído e pesado. É-me tão difícil explicar.

Acabámos por descer. Tínhamos cumprido todo o ritual dos corredores e passagens. Tínhamos uma lâmina na mão, um sabonete, um bilhete com o número do respectivo barbeiro. Dezenas de milhar de pessoas vêm aqui rapar o cabelo diariamente. Mulheres incluídas. De repente, desistir parecia algo cobarde. Não queríamos rapar o cabelo só pela experiência "turística", não fazia sentido. Na verdade não nos apetecia mesmo nada levar uma "carecada". Mas ao mesmo tempo, com toda aquela carga associada, com os pés a sentir o chão frio e molhado, as pessoas a olhar para nós curiosas, o que estarão estes dois estrangeiros a fazer aqui.

Decidimos rapar.

O Luís até tinha feito uma espécie de promessa, não ia cortar o cabelo, etc. Mas neste momento ou íamos embora ou rapávamos os dois. Não havia meio termo. E quase sem querer, sem planear nada, só porque sim, só porque já ali estávamos e faz parte... vamos lá.

Eu primeiro, o Luís depois. Não consigo agora descrever a sensação. Um dia destes. Um dia destes prometo falar sobre isso. Tem uma carga emocional forte, e não me apetece falar sobre isso agora.

O que interessa agora - e o post já vai bem longo - é que rapámos o cabelo. Fomos ao baeta, à maquina zero, levámos uma carecada.

Acabámos por nem conseguir ver o templo. Havia fila para catorze a dezasseis horas de espera. E os bilhetes VIP só no dia seguinte, ao almoço. Voltámos para as motas e descemos o ziguezague de curvas e contracurvas até Tirupati.