04/03/2016

PODIA TER SIDO PIOR (TENDO EM CONTA QUE IA SENTADO NO LUGAR 13)

O post que se segue esteve para se chamar "Crónica de um pesadelo anunciado"... mas, para ser muito sincero, não foi tão mau quanto estava à espera.

Na semana passada meti-me num autocarro para Mrauk Oo, uma terrinha quase na ponta mais ocidental do Myanmar, no estado de Rakhine, já muito perto do Bangladesh. Podia demorar entre 21 a 24 horas, ou mesmo mais. E pela amostra logo ao arranque, achei que o tempo de viagem ia ser um pormenor mínimo, tendo em conta outros... hmm... factores.

Mas a verdade é que não foi tão mau assim. Ou então sou eu que estou mais tolerante. Deve ser, deve.

O que não quer dizer que não tenha sido rica em eventos, a viagem.

Arrancámos de Mandalay às quatro da tarde (a hora prevista), depois de mais de trinta minutos a carregar bagagens e mercadoria. Não iam muitos passageiros - talvez quinze num autocarro que leva quarenta e cinco - por isso quase metade dos lugares ia ocupado com caixotes e sacos cheios sei-lá-do-quê. Por sorte tinha pedido para me trocarem o lugar original, e em vez de ir sentado com um turista chinês com aspecto de poucos amigos, fui à janela um pouco mais atrás, sem companheiro no banco do lado.

O meu lugar era o 13.

O que, superstições à parte, é um pormenor que interessa pouco. Mas eu gosto de números. ;)

Portanto: saímos de Mandalay às quatro, como era suposto. A uma velocidade de fazer inveja a muitos pilotos da Fórmula Um, com uma criancinha a chorar intensamente nos lugares da frente, um passageiro atrás de mim a comer pevides ou amendois ou lá-o-que-é - e a televisão ligada no canal religioso, com rezas budistas enquanto na imagem passam vários planos da Rocha Dourada. Estou feito, pensei. Vinte e quatro horas nisto.

Bem... ao menos, se não nos despistarmos entretanto, somos capazes de estabelecer um novo recorde.

Pouco depois de arrancarmos, o assistente de bordo decidiu que era altura de mudar o ambiente. Das rezas budistas passámos a emissão para o "Ídolos" birmanês. Só para ver quem grita mais alto: a criancinha ou os concorrentes.

Quando ao fim de hora e meia saímos da autoestrada (a velocidade manteve-se igual, agora que estávamos numa estrada pequena), nova mudança de canal. Agora estávamos a ver ver clips birmaneses com legendas, tipo karaoke, em que as histórias eram do mais trágicas possíveis. Só lágrimas.

Às 18:30 parámos num restaurante local junto à estrada (o jantar estava incluido no preço do bilhete) e ainda bem, porque uns minutos antes quase que saímos de estrada, depois de uma travagem pouco ortodoxa. Enfim: parecia um cenário de um filme chinês antigo, o restaurante, todo em madeira, um pé direito alto, com escadas e mezzanines, candeeiros coloridos cheios de pó, fotografias nas paredes com os filhos da dona do restaurante, uns vestidos de monge, outros na graduação da faculdade. E só para chatear: os obrigatórios neons e a publicidade ao raio da coca-cola e das operadoras de telecomunicações, que nem aqui dão descanso. Desculpem-me o francês, mas é mesmo assim.

A dona do restarante "engraçou" comigo, talvez porque eu era o único estrangeiro. Sempre a sorrir, a perguntar-me se a comida estava ao meu gosto, a "fazer olhinhos". Aos gritos com os empregados... mas a cantarolar. Nunca tinha visto (melhor: ouvido) nada assim: começava com aquilo que parecia um grito, e acabava numa harmoniosa melodia.

Voltámos à estrada meia hora depois, outra vez à mesma velocidade, na televisão uma telenovela, ou qualquer coisa tipo Malucos do Riso. Sendo o único estrangeiro, era o único que não percebia nada. E o único que não ia a rir às gargalhadas. Mas é humanamente impossível não sorrir, quando estão outras quinze pessoas a rir.

No lugar à minha frente, uma miúda assistia a clips de música no telefone, em alta voz. Por favor.

A criancinha dos berros deve ter sido abandonada no restaurante, porque nem-pio.

E o gajo atrás de mim a comer os pevides, ou os amendois, seu-sei-lá, já enervava. Mas pior, só quando senti a chegar um ar quente e cheiroso... a sério?! E não foi uma ou duas vezes.

Mais meia hora. Parámos e entraram mais seis ou sete pessoas. Três eram estrangeiros, trocámos um breve cumprimento mas não houve mais interacção até de manhãzinha. Eu continuei sozinho no meu lugar. Podia ser pior. :)

E a partir daqui... a partir daqui nem sei bem. À falta de "comprimidos mágicos" tomei um anti-estamínico, que sempre "dá moca", ou pelo menos um bocadinho, ou pelo menos acredito nisso e sempre ajuda acreditar. Entrei em modo zen e sinceramente devo ter passado a noite entre um sono-leve e um leve-despertar, porque apesar das curvas e contracurvas, das travagens e guinadas... até às cinco da manhã lembro-me apenas de partes da viagem, lembro-me de mostrar o passaporte duas vezes, lembro-me de pararmos para ir à casa-de-banho, lembro-me de algum desconforto e de mudar muitas vezes de posição... mas não me lembro de ir acordado a noite toda sem conseguir dormir. Menos mau.

Cinco da manhã, portanto.

Não pensem que cheguei ao meu destino. Nem por sombras.

Mas chegámos a um rio cuja ponte está interdita ao tráfego. Ou seja: a única maneira de atravessá-lo é por ferry. E há muita gente à espera. Estacionámos algures e apesar da criança recomeçar a chorar, o driver estar sempre aos gritos sabe-se-lá-com-quem, mais o outro atrás de mim que felizmente já não se peida (oops), mas agora deu-lhe para ligar o telefone nas orações matinais... enfim... apesar disso tudo, adormeci ferrado e só voltei a acordar quando começaram as movimentações para o ferry, uma hora e meia depois.

Seis e meia, o sol já apareceu no céu, é de manhã.

Não há meio de sairmos de onde estamos. Há dezenas de autocarros à espera, como nós. O ferry demora a carregar, só leva oito ou nove de cada vez, isto é coisa para demorar muito, muito tempo. E foi. Só conseguimos atravessar para a outra margem por volta das nove da manhã... quatro horas depois de chegarmos ali.

Isto nunca mais acaba!

E de onde vem este cheiro a casa-de-banho... será que alguém se aliviou no autocarro?

Voltámos a parar meia hora depois da travessia, para tomar o pequeno-almoço. Finalmente troquei alguma palavras com os outros estrangeiros: um australiano e uma inglesa, casados; e um inglês meio-peruano, miúdo. Tudo "boa onda". A despedida, daqui a uns dias, vai ser de "coração apertado". Engraçado as amizades que se controem em viagens. Tão rápidas, tão intensas. Tão bom.


E tão bom, foi também o resto do percurso: apenas mais quatro horas, coisa pouca, por uma paisagem de aldeias e rios que fazia lembrar uma espécie de Kerala, mas mais seco e mais pobre e mais antigo.

E quando finalmente apareceram templos antigos misturados na meio da paisagem... sabia que tinha chegado a Mrauk Oo.

Tinham passado vinte e uma horas desde o arranque, em vez das supostas vinte e quatro. Nada mau. Podia ter sido pior.

2 comentários:

Clara Amorim disse...

Sempre com o teu melhor sentido de humor...! ÚNICO!
Abraço!!! 😊

Ana Maria Ribeiro disse...

Obrigada pela sua descrição. Este ano talvez vá até à Birmânia, mas ainda pondero outra alternativa. No entanto nunca será uma viagem como a sua porque o tempo é muito limitado, e as condições diferentes (incluindo a idade). Mas vou lendo os seus textos tão motivadores.Boa viagem!